segunda-feira, janeiro 01, 2007

a duquesa e o céu - Sérgio Lemos

A duquesa e o céu
Sérgio Lemos
Romance 176 páginas
Formato: 14 x 21 cm
ISBN: 8501056987

Pintores piedosos, também, hão de ter tido à vista o relatório dos videntes, e há de ter corrido em cópias múltiplas pela Colô¬nia e Reino, de onde passou acaso às nações, sendo disto indício a multidão de obras, nas artes e na Religião do século, que de algum modo o repetem, ou nele tomam inspiração; seja ao representar o espaço do Céu, nos tetos das naves, tal como o viram os homens do Povoado, sejam no relembrar em telas aquela suma graça e esplendor de movimentos que observaram os colonos ? e assim o referiram ? neste Céu. Não viram, então eles, o Céu tal como a época o imaginava (e isto poderia julgar o perspicaz leitor), mas antes a época imaginou o Céu tal como eles o viram, feliz provisão de Deus. E foi este modo de representar, na História das Artes, o estilo que se chamou barroco, não se originando, portanto, tal barroco, de inclinação natural dos homens, ou do século, mas, diretamente, da revelação de Deus. E isto bem se vê das particularidades barrocas chamadas ? os maneirosos gestos, um dedo mindinho que se levante e o patético mover dos braços, o mover-se tudo. O frenesi, a abundância, a demasia: que é isto senão o próprio Céu, como nos testemunharam os colonos? E os gordos anjinhos, as lágrimas, os deslumbrantes matizes, os raios de luz! E as gordas nuvens entre colunas, e os capitéis ciclópicos, o excesso, a loucura, o esplendor? De duas uma, sim: ou o Céu inspirou-se em tal barroco, ou se inspirou o barroco no Céu. Sendo o Céu, dentre os dois, o mais antigo, há de caber-lhe a precedência, e fica provado ser o barroco de origem divina; tal como os monarcas absolutos, as Sagradas Escrituras, o poder dos papas e mesmo, na Igreja, a tradição oral. Acertado isto, voltemos, como de hábito, aos colonos, e sua feliz visão.

A duquesa e o Céu ? Sergio Lemos (pp. 83 e 84).


Sergio Lemos nasceu no Rio de Janeiro em 1935. Formou-se em Direito e Sociologia pela PUC-Rio e em Ciências Sociais pela Universidade de Laval, no Canadá. Trabalhou com consultor, redator e chefe de pesquisa em diversas publicações, entre elas o Jornal do Brasil e o Correio da Manhã. Em 1998, faleceu no Rio de Janeiro, deixando dois romances e a coletânea de poesias A luz no caleidoscópio, publicada pela Topbooks em 98.

oque já se disse sobre - (crítica honesta, acreditem; eu já li o livro e, inclusive já dei de presente!)

Uma crítica à imposição da modernidade como valor absoluto. Em A DUQUESA E O CÉU, Sérgio Lemos retoma a literatura picaresca de séculos atrás. Recorre a uma linguagem afetadamente clássica, até arcaica. Mas, antes de mais nada, o livro é um debate filosófico também clássico: a incompatibilidade lógica entre a existência de Deus e a existência do Mal. Nele, o autor faz, também, uma alusão ao naufrágio de todos os idealismos, fenômeno típico deste fim de século. Seja qual for o modo de interpretar o livro, a escolha da linguagem é intencional e traz subentendida

O livro narra as aventuras e desventuras de uma surrealista fidalga do século XVII, que sonha em restaurar a independência de Portugal ? então sob o domínio espanhol, depois do sumiço do rei Sebastião I na batalha de Alcácer-Quibir. Em meio a intrigas da corte, peripécias e confusões ? o próprio Lemos considerava a protagonista "personagem já de si implausível" ?, a duquesa vem parar no Brasil colônia, onde a história encontra o seu desfecho. Essa novidade Sérgio Lemos garimpava, de certo modo, ao se voltar aos clássicos, onde encontrava algumas gemas, que burilava então com metódica paciência, apostando antes numa eternidade que nos une a todos do que numa modernidade que nos divide.

O tom irônico das alusões religiosas e teológicas oculta a profunda afeição do autor por todas as tradições judaico-cristãs e, ao mesmo tempo, um inconformismo em relação ao radicalismo das instituições que se multiplicam nesse terreno. Tudo isso com a característica preocupação de Lemos com a linguagem, dono que era de um acurado senso estético.