sábado, novembro 19, 2005

Tinha um hábito muito peculiar


Tinha um hábito muito peculiar. Adorava correr nua para o teto do prédio quando passavam helicópteros. Se divertia com a possibilidade de acidentes aéreos. Vinha doida subindo as escadas tirando a blusa e jogando longe o sutiã. Parava com um ar coquete bem no meio da laje e se tremelicando toda levantava os braços. Inventara uma maneira de tremer-se toda, bem rápido, de modo a balançar bastante os seios. Acreditava que por algum efeito óptico qualquer, do helicóptero seriam vistos três seios, o que provocaria o possível acidente. Ria-se de cair no chão, às gargalhadas. Endiabrada, sabia que somente poderia ser vista de cima. Nenhum vizinho a veria nunca, e se vissem, pensava sempre deliciada com um sorrisinho: fodam-se. Havia prometido a si mesma dar especial atenção as suas próprias baboseiras. Desenvolvera uma teoria: o mundo das pessoas comuns é na verdade um diabo chato e avarento sem imaginação e nada divertido que queria dominá-la, por dentro, nos pensamentos, nos pequenos hábitos, naquilo que ninguém tem nada com isso de modo a torná-la chata e avarenta, sem imaginação e nada divertida.
A coisa mais sublime era quando, diante de algum argumento estruturado e moralizante, repetia a mesma sentença e alterava seu sentido levantando a sobrancelha, ou fazendo alguma mensura idiota de modo a comprometer o sentido da fala, mantendo uma postura concentrada e dramática de quem absorve aquele argumento a ponto de colocá-lo na lapide do túmulo. Era tida por sonsa; professores, chefes, parentes e figuras hierarquicamente superiores, era uma unanimidade, coisa de gente burra.
Ouvia atentamente as histórias de sua avó com quem, desde pequena, combinava as histórias mais absurdas para comentarem com a família na mesa, ou na frente da televisão. Crimes fantasiosos, datas comemorativas inventadas, teorias conspiratórias de todo tipo que eram repassadas a vizinhos, conhecidos, nos ônibus, estações de trem. Sempre uma seita nova para acabar com o mundo ou a morte prematura de algum famoso amado por todos. Quanto mais famoso, mais morria. Uma carnificina impar. Vírus asiáticos que chegavam nas malas de turistas. Sucuris do pantanal nos esgotos das cidades. Jacarés de água salgados confundidos com tubarões e sempre uma autoridade escondendo os fatos para não causar pânico nas populações. Vez por outra dava certo e acabavam pré-noticiando a morte de fulano ou cicrano, o que provocava sempre grande alvoroço na casa. Gritos triunfantes: ?morreu?. Parecia final de copa do mundo. Na falta do que fazer, iam ao velório compartilhar com os fãs memórias inventadas. Nada mais divertido do que vovó partilhando memórias de fulano com sua netinha e um curioso acreditando em tudo e com olhos crédulos dizendo: disso eu não sabia.
Com a ajuda de sua avó, atormentava as crianças do vizinho da casa da frente com supostas histórias do jornal de anteontem. Seqüestro de crianças cuja descrição sempre coincidiam com as do público ouvinte. Maníacos, tarados, um vasto repertório de criaturas bizarras escondidas por trás de respeitáveis senhores de terno e velhas loucas com cabelo desgrenhado que moravam nos finais das ruas. Era batata, todo fim de rua tinha, fatalmente, uma velha louca de modo que se no final de uma rua não se desse de cara com uma velha louca de cabelos desgrenhados carregando crianças em um saco é porque se estava no começo da rua. O final da rua seria do outro lado, como dois e dois. Certa vez, chegaram supostamente a ligar para a polícia, denunciando os pais dessas crianças após constatarem a semelhança do casal com um casal de rufiões, ao que as crianças somente reagiam dizendo: mentira, papai trabalha na farmácia; ao que vovó respondia: o velho truque da farmácia, sei. Por anos a menina do meio procurou na multidão aquela que seria a sua cópia e a qual deveria matar antes que fosse morta e seu lugar na família tomado por aquela falsa criatura que, então, passaria a ser ela mesma. Com o mais velho foi pior. Esse passou muito tempo tentando lembrar de quando teria matado o seu original e tomado o lugar desse suposto nos braços de sua mãe e pai até que chegou a impressionante conclusão de que se fosse ele o outro, ainda assim seria ele mesmo o outro, o que não faria diferença nenhuma. Quanto ao assassinato, concluiu que não há corpo sem crime, ou crime sem corpo, enfim.
Tinha obsessão pelo método. Sabia que seguindo à risca qualquer receita de bolo, sairiam bolos medonhos ? conselhos de sua avó ? e fazia bolos metodicamente preparados e ficava ansiosa olhando pelo vidro do forno até vê-los murchar invariavelmente. Somente ficava mais feliz quando o bolo dava certo, o que implica dizer que sua teoria dava errado e que não havia receita possível para controlar a possibilidade do sucesso do bolo, nem o contrário disso.
Por essas e por outras nunca acreditou em telejornais. Sempre pensava na criatura que estaria por trás daquelas histórias e as histórias que sairiam daquela primeira história se repetindo e se modificando a cada comentário feito dos diversos pontos de referência possíveis. Depois substituiu essa visão das coisas por uma teoria fatalista que dizia que nada é determinante. Se alguma coisa é determinante, essa coisa estaria acima de alguma lógica humana possível de modo que ela, como ser humano compreendido dentro das suas possibilidades de percepção e raciocínio, refutava qualquer argumentação indutiva afirmando a impossibilidade das coisas serem diferentes do que eram. Sempre poderia se chegar um segundo antes ou depois da bala fatal, bastaria se adiantar ou se atrasar por algum motivo. Ou se o atirador fosse míope e o alvo fosse outro que não o alvo atingido? E se o atirador levasse na cabeça um cocô de passarinho? Um espirro? E se o atirador fosse um suposto traído e perdoasse, por algum motivo, o traidor? E se o traído chegasse a conclusão que sua vida é bem melhor longe de pessoas que traiam sua confiança e fosse a praia? Praia é sempre solução para todas as coisas. De modo que sempre haveria milhões de maneiras de não se estar na frente da bala quando do tiro, ou o contrário, sempre haveria milhares de maneiras de se estar diante de uma bala quando de um tiro. Ao que se conclui que o Santos Dumont tendo escapado de todos os tiros possíveis, perdoado todos os traidores possíveis e sido perdoado por todas as traições possíveis, inventou o avião, o que alterou consideravelmente o destino do planeta, não só da humanidade. Esse raciocínio compreende as baleias brancas e os passarinhos sem asa da Oceania, que por sua vez, caso tivessem asas poderiam ser de vários outros lugares que não a Oceania, nem mesmo havendo motivo aparente para que fossem habitar justamente a Oceania e serem caçados por atiradores que poderiam ter, acidentalmente, acertado o Santos Dumont que, morto, não teria inventado o avião. Poderia ainda o passarinho ter sido pego pela hélice do avião e danificado o motor sendo tudo muito mais fantástico e vexatório e feito com que as pessoas, desacreditadas pelo vôo frustrado em função do passarinho, chegassem a entender que não seria possível o avião em função dos passarinhos sem asas da Oceania que, tendo asas, seriam de todos os lugares e, portanto, uma ameaça à aviação mundial. Enfim.
No seu conceito de acidentes aéreos constavam alterações de rotas, pequenos atrasos que seriam determinantes no desenrolar da vida das pessoas envolvidas e o seu papel na história da humanidade daí por diante. A teoria das balas funciona também para carros e atropelamentos, naufrágios, raios, hecatombes nucleares entre outros. Alias, adorava o termo hecatombe. Achava melhor do que ?porra?. ?Porra? era, sem dúvida, um termo muito bom de se dizer; tem energia, é concentrado e enche a boca, mas ?hecatombe?, compreende todo um continuo que acaba com um biquinho e um queixo mole, uma boca entreaberta entre o perplexo e o abobalhado, soberbamente imbecil ? pausadamente: he ca tom be! maravilhoso. Bom, mas voltando ao assunto, por exemplo, um atraso de trinta segundos seria determinante no atropelamento, ou não, de alguém que estivesse nos helicópteros. Pensava: e se estiver no helicóptero o inventor do tele-transporte? A sua participação na história do mundo seria determinante ao tremelicar nua no telhado de um prédio. Ai poderia ser inventado o tele-transporte que por outro lado poderia possibilitar que ela pudesse tremelicar dentro dos helicópteros provocando acidentes aéreos mais enfáticos e depois poderia ir para praia e ler no jornal a história feita em cima da história que ela inventou. Mas pensava também que o tele-transporte poderia levá-la a vários outros lugares não programados. Sabe-se lá, digitar errado o e-site. E se fosse por coordenadas georeferenciadas? Como se chegaria a um helicóptero em movimento? Poder-se-ia transportar partes das pessoas? Quem sabe poderiam aparecer dentro do helicóptero dois seios tremelicando? Seria um acidente e tanto. Imaginava então: três seios em efeito óptico soltos dentro do helicóptero. A cara do piloto. Seria um delírio! Quanto a mortos e feridos, salvar-se-iam todos, afinal, tele-transporte serve pra isso: transportar alvos, atiradores, traidores e traídos para antes ou depois das balas. E as balas tele-transportadas? Essas iriam a praia, enfim, praia é solução p