sábado, julho 23, 2005



Historietas

1.
Sabia que não choraria. Era incapaz. Não chorava nunca, daquela vez não seria diferente. Sabia disso, conhecia-o bem, muito bem. Sabia-lhe doendo. Ele também bem sabia e diante da situação não teve como ser de outro modo; vendo que não choraria, arrancou do bolso uma faca e deu dois pequenos talhos, um em cada olho próximo ao nariz. Escorreram duas gotas de sangue. Foi embora. Não olhou para trás. Mais adiante, limpou o sangue em um lenço de linho branco e guardou no bolso. Tempos depois recebia, pelo correio, uma caixa com um lenço manchado de sangue. Nunca ouvira falar de carta de amor mais sincera nem de choro mais sentido.

2.
Estavam ele e uma amiga que o disputava comigo em frente ao palco. Os via a uma distância razoável perto da porta de saída. Ele estava animadíssimo. Em meio àquele povaréu, todos pulando, e, sem camisa, ele suava muito. A garota fingia atenção ao show e se protegia do suor alheio, mas firme no seu propósito de criar uma intimidade, forjar momentos compartilhados. Acabada a apresentação ele comenta alguma coisa com a ela apontando o palco. Veio em minha direção, sorriso de orelha a orelha, abriu os braços e se desabou suado sobre mim. Abracei-o e tratei de esconder meu sorriso. Não quis tripudiar em cima da humilhação de ninguém. De mais a mais, o lugar dela poderia ter sido meu. Meu coração, este sim, bateu no compasso da jugular que pulsava quase na minha boca.

3.
Absorvido, encontrava a ordem das coisas, decifrava aquela realidade como que debruçado sobre um papiro antigo. Vivaz, testava hipóteses, elocubrava possibilidades e com a certeza de um passo a frente de outro, concertava a tomada. Levou vinte minutos naquilo, depois recolheu as ferramentas, pegou um abajur, testou a tomada e me disse: ?olha, deu certo?. Ficou ali parado ainda por algum tempo, tendo em uma das mãos a caixa de ferramentas e na outra o interruptor do abajur. O que era aquilo? Nem comoção havia de ser. O que era aquilo? Era o mais delicado das criaturas. Era o tédio do meu amor eterno. Era o tempo parado das tardes de domingo. Era a revelação de um segredo dito em freqüência tão alta a não ser ouvido. Atividade subterrânea de água que avança a trezentos anos. A delicadeza do seu vigor físico, de sua presença de pedra, de sua carne compacta. Delicadeza dos vinte mil anos de sua espécie e delicadeza é coisa que corta. Esquartejado lhe abraço por trás e pouso meu rosto entre suas omoplatas a lhe aspirar o vapor exalado. Tendo as mãos ocupadas, jogou para trás a cabeça. Lasso, me prendeu em um abraço liberto. Refez-se, largou o interruptor e desembaraçado de mim foi guardar as ferramentas no seu devido lugar. Quando voltou, me encontrou no sofá, sentado com minhas leituras e sem menor cerimônia se aninhou no meu peito e lá ficou. Pegou-me o braço que não segurava livro e passou por sobre o peito. Queria carinho e conseguiu. E era assim, acabou dormindo. Passei a tarde com ele dormindo em meu peito e lendo um livro. Gostava de dormir no meu peito e eu gostava que assim fosse. Acontecia de também dormir e acordar sonhando, puxando os fios dos cabelos dele. Nessa lassidão passávamos dia e noite sem nunca termos queridos isso ou o contrário disso ou outra coisa. Isso é a fartura de dois que não pedem, nem precisam.

4.
Ouvi no ônibus: já não lembro do que me aconteceu, deixei na esquina, no fundo do buraco de corrosão do metal da lata de lixo que fiquei olhando, fixamente, para enxergar o fundo. Deve ter sido isso, o buraco na lata de lixo me chupou o passado. Esqueci de tudo como se houvesse perdido a foto do meu pai morto. Da Iracema só sobraram as meias e os sapatos. O rosto do meu passado amarelou, veio um bicho e comeu. O bolor tomou conta e tudo desapareceu, acabou como acaba o dia, passando, se indo, descendo, sumiu. é mesmo? Queria que fosse o meu destino fatal. Olha, se o seu destino é fatal ou não, não vou me preocupar com isso, se ele for fatal, fatalmente será o seu destino, se não, não deixará de ser seu destino por isso. Acredite, coisas não fatais existem em larga escala, e isso não é religião. Veja, direita - esquerda, frente - trás, é tudo um movimento de cabeça, órbita dos olhos. Anda-se em sentido direito-esquerda, pode ser esquerdo-direita. Andar contra o tempo não altera o sentido do relógio, enfim, não importa, no presente, o passado não existe. E digo contente: memória é bom, esquecimento também. Ai que saco! Tudo isso é saudade. O contrário disso também.


O autor aceita temas para historietas. Garanto que as selecionadas serão tratadas de modo muito especial a satisfazer o leitor/remetente.

Nenhum comentário: