quinta-feira, outubro 20, 2005
Crônicas de um sedutor elegante - mais Antônio Maria por Joaquim Ferreira dos Santos
Crônicas de um sedutor elegante
José Castello
Joaquim: "Antônio Maria era movido a amor"
20.10.2005 | As crônicas de Antônio Maria, o grande boêmio, o grande romântico, o grande melancólico, estão de volta. ?Seja feliz e faça os outros felizes? (editora Civilização Brasileira), uma seleção de trinta e quatro delas organizada pelo jornalista e também cronista, de ?O Globo?, Joaquim Ferreira dos Santos, traz um subtítulo que pode parecer redutor: ?Crônicas de humor de Antônio Maria?. Mas só parece.
O realce do humor resume a face solar de um pernambucano com o coração carioca, que fez muita gente soluçar quando se punha a exercitar seu outro lado, o melancólico, consagrado em especial nas célebres canções do gênero dor-de-cotovelo. Como sofrer de melancolia e, ao mesmo tempo, ser cômico? Em suas crônicas, Maria exercitou, como poucos, essa ponte difícil, mas fundamental, entre a infelicidade e a felicidade. E essa coragem fez dele um grande cronista.
Maria foi um cronista prolixo que, até morrer precocemente, no ano de 1964, aos 43 anos, do coração, publicou nos jornais quase três mil crônicas. Como agüentou, como teve forças, para escrever tanto? De onde tirava tantas idéias? Joaquim Ferreira fez sua seleção pesquisando as páginas de ?O Globo?, da ?Última Hora? e de ?O Jornal? entre os anos de 1955 e 1964. O resultado é muito revelador, já que Maria pertence à tradição dos grandes cronistas brasileiros do século 20, como Rubem Braga, Paulo Mendes Campos, Carlinhos Oliveira e Fernando Sabino, ainda que seja, provavelmente, o mais esquecido deles.
?Maria dizia escrever sobre o Nada?, Joaquim relembra em sua apresentação. ?Era quase uma antecipação de Woody Allen?. O interessante nas crônicas de Antonio Maria é que elas antecipam um tipo particular de liberdade interior, de afrouxamento das defesas retóricas e solenes, que se tornariam, depois, marcas do gênero. Maria talvez tenha sido desprezado porque, se tinha um pé no futuro, conservava o outro fincado, com teimosia, no passado. Aqueles que se julgavam modernos - ainda que muitas vezes não fossem - o viam como um passadista. E ele soube tirar proveito, muito proveito, desse lugar marginal que lhe coube.
Joaquim Ferreira dos Santos está lançando, ainda, um livro de crônicas pessoais, ?Em busca do borogodó perdido? (editora Objetiva, com lançamento previsto para o dia 26 de outubro, a partir das 19 horas, na butique Maria Bonita Extra, em Ipanema). Livro em que ele se afirma como um dos mais inspirados cronistas da nova geração. Joaquim tem, como Maria, uma sensibilidade especial para encontrar significado nas coisas desprezíveis. Para se encantar com as miudezas, com aquelas coisas banais que nem percebemos, com - como diz nosso preconceito - as bobagens. Tudo aquilo, enfim, que fica de fora do grande jornalismo. É sobre esse amor à crônica como lugar da liberdade e do anticonvencional, mas também da sensibilidade e da delicadeza, que ele fala na entrevista que se segue.
Lançamentos do cronista:
de organizador a autor Antonio Maria seria considerado hoje, certamente, um melancólico. É provável que nossos psiquiatras quisessem, até, tratá-lo com antidepressivos. E até mesmo, como fez o psiquiatra de Van Gogh em relação a sua pintura, quisessem ?curá-lo? de sua música e de seu estilo um tanto mórbido. Que importância tem, para você, essa reaproximação com um personagem como Maria?
A aproximação não é com o personagem, mas com a obra. O comportamento de Maria, o apaixonado radical ao estilo Vinicius, sempre carente de uma inspiração amorosa para produzir, é um detalhe. A Bossa Nova também não percebeu que por trás do melancólico havia um cara moderno, sofisticado. Ronaldo Bôscoli, já que Maria cultuava a fossa, o tratou como um passadista qualquer. Mas não era. Uma crônica como ?Seja feliz e faça dos outros felizes? mostra que, sob a aparência da melancolia, havia sempre o humor. Um humor não escancarado, nada óbvio, mas que brincava com aquela infelicidade toda. Não se levar a sério todo o tempo é uma maneira de sair da melancolia, de desfazer a imagem do chato, do deprimido de carteirinha.
As crônicas e músicas de Maria trazem algumas teses radicais sobre o amor. O ?ninguém me ama?, apesar de clichê da dor de cotovelo, mostra, ao mesmo tempo, uma fé inabalável no amor e ainda a consciência dramática de sua impossibilidade. Hoje, nos tempos do ?amor líquido?, como já definiu um sociólogo, o que resta para o ?amor duro? defendido por Maria?
Maria era movido a amor, como diria um clássico qualquer do clichê barato. Seu ?Diário?, lançado há dois anos, mostra sua busca da mulher ideal, da relação perfeita, da sintonia exata entre homem e mulher. Maria estava muito distante do cinismo de hoje, do ?ficar com?, do correr atrás. Foi um sedutor elegante que, segundo o depoimento das mulheres, usava a fragilidade, e não o machismo, como método de aproximação. Morreu buscando o amor, dizem até que morreu por causa da profunda dor de sua separação de Danuza Leão. Mas não acredito nisso. Ele tinha muitos problemas de saúde, principalmente problemas de coração, e apagou por causa dos excessos, e não das faltas.
Você é um especialista sensível nas coisas do passado, nas miudezas do cotidiano, nas experiências pequenas. Nesse sentido, o jornalismo que você pratica se opõe ao jornalismo dominante, das grandes manchetes, dos grandes escândalos, da novidade a qualquer preço. Maria, com sua melancolia e suas idéias românticas, parece ser hoje um personagem anacrônico. Qual o significado de seu interesse por ele?
Tenho pelo Maria o mesmo interesse que tenho por aquela geração de ouro de cronistas. Braga, Sabino, Mendes Campos, Carlinhos são todos meus ídolos, escritores que conseguiram uma temperatura perfeita entre literatura e jornalismo, a ponto de se integrarem com suavidade no corpo da revista ?Manchete?, que foi a primeira grande vitrine desse tipo de texto. Eu tento seguir esse caminho, busco um texto que se equilibre entre o literário, a experimentação, um dar de ombros para alguns paradigmas do que seja um texto de jornal, mas sempre de olho na leitura. Eu quero ser lido. Maria fazia exatamente a mesma coisa. Escrevia todos os dias, vou repetir, todos os dias em um jornal - ?O Globo?, ?Última Hora?, ?O Jornal? - e misturava alhos com bugalhos. Misturava reportagem policial com perfil com crítica com noticiário da noite com crônica e mandava o pau na máquina sem perguntar o que era o quê. Ao contrário de Braga, Mendes Campos e Sabino, ele se aproximava mais do texto jornalístico que do literário. Rubem Braga poderia ter acabado na Academia Brasileira de Letras. Maria, não.
Maria se interessava pelos sujeitos que caminham na contra-mão de seu tempo. Por exemplo, Adamastor, ?o estranho homem puro?, personagem de uma série de crônicas deliciosas. Homens anacrônicos, muitas vezes desagradáveis e rabugentos, mas que, com sua resistência ao presente, denunciam o que o presente tem de descartável, de tolo, de imprestável. Quando falava desses personagens, Maria estava falando de si mesmo?
O Adamastor está sendo publicado em livro pela primeira vez. Eu acho que o Maria ia de Adamastor quando estava cansado de falar na primeira pessoa. Nesse caso, o outro falava o que ele não tinha coragem de falar. Pela liberdade que se permite, são momentos de fino estilo. Eram momentos - digo aqui da minha varanda de sacadas - em que ele se cansava de ser politicamente correto e metia o pau no folclore, no respeito aos índios, no artesanato e outras mumunhas respeitáveis na época. O Adamastor devia ser metade o próprio Maria, sua face oculta. E, na outra metade, o desejo de descansar de si mesmo. Era a delícia da irresponsabilidade.
O humor de Maria é um humor delicado, sutil, que se opõe ao humor pesado de hoje, ao estilo Casseta e Planeta. Isso aparece, bem claro, quando Maria se põe a escrever um consultório sentimental. Está, por exemplo, na resposta que dá à consulente Cláudia Rúbia, uma mulher bonita que quer ingressar no cinema e lhe pergunta o que deve fazer. ?Comprar uma entrada?, Maria se limita a sugerir. Esse humor ingênuo, comparado com o humor feroz de hoje, não parecerá tolo?
Vejo semelhanças com o humor do Casseta, mas muito rápidas. Por exemplo, na maneira de Maria brincar com os personagens da atualidade e de não respeitá-los. Zoava dos amigos também, transformava o Caymmi, o Di Cavalcanti, o Vinicius em personagens. Lidas hoje, cinqüenta anos depois, algumas cartas do consultório sentimental podem soar ingênuas. Mas o PRK-30 também, os irmãos Marx também. Não podemos esquecer que ele passava parte do dia escrevendo piadas para as rádios e isso o obrigava a baixar um pouco a mão. Mas a produção de humor para os jornais, pela sofisticação e estilo, assegura um papel de destaque ao humorista Maria. Infelizmente, ele ficou marcado pela turba da Bossa Nova como um sujeito a ser detonado. Mas eram tempos de rancores radicais. Maria talvez sofresse mais que os Bôscoli da vida, talvez fosse menos bonito e mais pernambucano. Mas, com as palavras, estava na mesma sintonia da modernidade, como se pode atestar por muitas letras de música, todas solares e Bossa Nova total.
Maria foi apaixonado pela realidade. Em uma crônica, ?Ao povo mineiro no mundo inteiro?, ele oferece uma frase que sintetiza essa paixão: ?Basta que você deixe de interpretar as coisas?. Pegar as coisas de modo direto, sem volteios, sem complicações, é um atributo comum entre os grandes cronistas. Pergunto a você, que também é excelente cronista: por que essa maneira franca de narrar o mundo, mesmo entre os cronistas de mais prestígio, parece estar hoje em desuso?
Esses caras escreveram muito, nos sentidos de qualidade e de quantidade. Carlinhos Oliveira, que já pertence a uma outra geração, tinha um estilo bastante próximo do artigo jornalístico. Ele escrevia muito na redação e isso acabou impregnando seus textos de alta temperatura jornalística. Braga e Paulinho gostavam de uma cena menos veemente, mais lírica. O Maria é, talvez, uma passagem entre esses dois estilos. Escrevia, como você diz, de uma maneira franca. Seja ela o que for, acho que as crônicas de hoje precisam de mais veemência. Cá entre nós, já que ninguém está nos ouvindo: eu já não lia o Rubem Braga em sua fase final, quando ele publicava suas crônicas no ?Estadão?. Acho que o desafio da crônica, hoje, é encontrar o tom que não a torne um bichinho estranho no corpo do jornal. Nem quente e tensa demais, como se fosse mais uma matéria, nem lírica e lenta que desanime e afaste do leitor.
Em ?Café com leite?, Maria diz: ?O homem só tem duas missões importantes: amar e escrever à máquina?. Essa redução da existência a dois elementos fundamentais e semelhantes, sexo e criação, talvez ilustre a maneira como Maria gostava de descomplicar o mundo, de simplificá-lo. Numa época como a nossa, de especialistas e jargões profissionais obscuros, que lugar sobraria para o modesto Maria?
A crônica é, por princípio e charme, um gênero menor. Mas é também um jornalismo metido a besta, com umas palavras que não costumam aparecer nas reportagens. Sou um apreciador do novo jornalismo americano, que mistura todos os gêneros: reportagem, ensaio, artigo, crônica, diálogos e o que mais couber. O Maria escrevia para ganhar dinheiro, como todos nós, jornalistas. Tanto que morreu sem publicar nenhum livro, seus livros são todos póstumos. Em suas gavetas, nada foi encontrado além de seu diário. Todo o resto do material reunido em livro foi recolhido dos jornais. Maria escreveu sempre pressionado pelos prazos e o bafo de um editor no cangote, arrancando-lhe o texto da máquina. Ele disse que escrevia um diário para escrever sem compromisso e com liberdade. Era um jornalista, não um literato. Sua palavra de ordem era: ?Qual é o trabalho que tem aí para fazer??
Você está lançando, também, um livro de crônicas que, aliás, tem um título, e também uma capa, muito inspirados. Como você chegou à crônica? E como você se vê, se critica, como cronista?
Eu comecei a escrever crônicas por acaso, no jornal ?O Dia?, do Rio de Janeiro, no ano 2000. Foi acaso mesmo: sobrou o espaço de um cronista e me escalaram para preenchê-lo. Eu preenchi. Depois fui para o ?Jornal do Brasil?, agora estou no ?Globo?, e continuam deixando que eu escreva minhas crônicas. Como o jornalista começou na frente e o cronista é recente, acho que ainda tem muito jornalismo no que escrevo. É uma constatação, não chega a ser uma crítica, eu sempre gostei de crônicas que se aproximam da reportagem. Espero chegar a um ponto em que nenhum desses gêneros fique com o rabo de fora e seja tudo ainda uma coisa a se classificar. A crônica é um gênero híbrido. Ela começa sempre pelo espaço do jornal e isso acaba impregnando o estilo. Braga resumia a coisa assim: ?Se a pensata não é aguda, é crônica?. Acho que a crônica deve ser leve, não necessariamente com muito assunto. Mas com estilo e originalidade e, de preferência, abusar da subjetividade, com direito a muito ?eu isso?, ?eu aquilo?.
Você ainda não disse quem é seu cronista favorito. Aquele cronista de cabeceira, que está sempre rondando, como um fantasma, às suas costas. Quem é ele? E como você vê os cronistas de hoje? Eles avançaram, ou retrocederam em relação aos cronistas ?clássicos??
Gosto, acima de todos, do Rubem Braga, que na verdade tem um nicho próprio dentro da crônica carioca. Sei lá o que é aquilo. Poesia? Conto? Nuvem? O Braga é um gênio absoluto, é tudo o que eu gostaria de ser um dia em que finalmente crescesse. Quanto à crônica de hoje, acho que ela está passando por um momento de transformação. Todos os grandes jornais têm cronistas diários, cada um com um jeito de escrever. Ou seja, todos concordam que o espaço é necessário. Quem o ocupa, isso fica ao gosto do editor. Muita gente escreve artigos nos espaços destinados à crônica. Eu persigo uma coisa no meio do caminho, com direito a vôos poéticos e bem pessoais, até o direito moderno de experimentar estilos e de salpicar tudo com jornalismo.
As reportagens vêm dos fatos, os artigos de fundo das idéias, a crítica vem dos objetos da cultura. As crianças nós sabemos de onde vêm. De onde vêm as crônicas?
Eu já escrevi uma crônica exatamente sobre isso, de onde vêm as crônicas. É um vale- tudo. Já escrevi crônica para uma palavra só, ?borogodó? - uma palavra antiga, que o dicionário define como um ?atrativo físico muito peculiar?. Já escrevi crônicas que eram perfis, como do Gay Talese. Reportagens, como o casamento do Luciano com a Angélica. Tudo, sempre, de um jeito desparagonado. Costumo definir a crônica como um quadradinho delimitado por um fio, e o editor escreve em cima: ?crônica?. O resto é com o autor. O bom cronista tira crônica de tudo e nisso o Rubem Braga foi imbatível. Tirava assunto de absolutamente nada.
Tirando o tal fio que a cerca e a palavra ?crônica? em cima, a crônica hoje parece um gênero esfacelado. A crônica clássica, ao estilo do Braga, já não faz mais sentido?
O esfacelamento da crônica é o reconhecimento de que a crônica tradicional, tal como o Braga e o Paulinho escreviam, não cabe mais nos jornais. Eles tinham uma levada e uma aproximação com a realidade que não combinam mais com os tempos de hoje. Ainda ficariam bem, talvez, numa revista. Ainda assim, os leitores dos jornais adoram as crônicas, o que é uma maneira de dizer que querem um texto diferente do resto do jornal. Eu sonho com o dia em que o texto de jornal seja tão original e personalizado quanto o das crônicas. Nesse caso, os cronistas ficariam liberados para radicalizar na experimentação e se tornariam definitivamente autorais. Acho que se faz muita crônica de cinema, muita crônica de psicologia, é verdade que algumas muito boas, nos espaços reservados às crônicas. Mas acho que esses textos estão no lugar errado.